terça-feira, 16 de junho de 2009

Poeta "versus" aposentada - Marisa Bueloni

Alguma coisa me diz que nasci com uma chama acesa dentro do peito e é ela que dá sentido à vida. Este fogo congênito confere também outros atributos, tais como brilho nos olhos, esperança a toda prova, espírito de luta, resistência à dor – estas coisas aparentemente tolas e suspeitas que causam senão preconceito, constrangimento.

Mas é com esta bela chama – o "ouvinte" me permite chamá-la de “bela”? – que cheguei até aqui. Venho literalmente capengando numa boa parte do caminho, mas venho. Como diria a moda da marvada pinga, venho “chifrando os barrancos”. Mas venho. Madre Tereza de Calcutá dizia: “Quando não conseguires correr ao longo dos anos, trota. Quando não conseguires trotar, caminha. Quando não conseguires caminhar, usa uma bengala. Mas nunca te detenhas!”.

Então, sigo em frente, sigo todos os sinais que a vida me dá. Esta chama tem suas inconveniências, porque, na maioria das vezes, ela nos encosta contra a parede e pergunta: e agora? Então, quando não há saída, temos de encontrar a válvula de escape. Isto exige algum treino para emergências e um imaginário manual de sobrevivência na vida diária, que não encontramos em lugar nenhum.

A busca pela saída requer raciocínio rápido, sagacidade, inteligência. E há situações em que somos uma mosca morta, tapados como uma porta e burríssimos. Verdade ou não é?

Atire a primeira pedra quem já não passou por situações extremamente vexatórias, daquelas em que não sabemos se fugimos para o deserto de Mojave, se nos escondemos no banheiro mais próximo, ou se fingimos um desmaio. Esta última exige certo conhecimento da arte dramática, que a maioria não possui.

Pois é. Aí, de nada adianta ter uma chama acesa dentro do peito. Não é vantagem alguma ter nascido com ela. Quando o estrago é geral, resta pouco a fazer. São as situações lamentáveis em que metemos os pés pelas mãos, quando teríamos desejado que a terra se abrisse e caíssemos dentro daquele buraco para sempre.

Então, carregar esta chama muitas vezes nos ajuda; noutras, atrapalha. E neste contrapeso, nesta compensação de forças, vamos tocando nossa vida, buscando um possível equilíbrio, o suficiente para que fiquemos afastados da depressão, da síndrome do pânico, da paranóia e da gripe suína. O suficiente para não nos matar de vergonha. Dá para ser saudável e maluco beleza ao mesmo tempo.

Todos nós temos nossas esquisitices. Caetano Veloso já disse que, de perto, ninguém é normal. Ele disse também que “gente nasceu para brilhar, não para morrer de fome”. Pronto. Disse tudo. Não precisava ter dito mais nada. Os poetas são mesmo as antenas da raça, Ezra!

Enfim, esta chama me leva a um espírito transgressor (nada que infrinja a lei ou cause um B.O.). É tudo coisa inocente, inspiradora, típica de quem é metido a besta e quer cometer uma transgressãozinha leve, alterar um pouco o rumo das coisas, tentar subverter com graça e enlevo a ordem estabelecida, para ver no que vai dar, ou para tornar o mundo mais interessante, mais agradável e mais bonito. Apenas isso.

Coisa simples. Por exemplo, ando cansada de escrever “aposentada” no quesito “profissão” nos formulários da vida. Começo a colocar “poeta”. Quando o quesito é ao vivo e perguntado, fica ótimo. “Sua profissão?” “Poeta”. Pode esperar um olhar de espanto, um começo de riso e a pergunta: “Mas... poeta é profissão?”.

Bom, de há muito que o ofício de poeta é visto com estranheza e com uma expressão de desconfiança. Os poetas são malditos e são benditos. Depende.

Mas que é bonito escrever “poeta” no campo do formulário onde se pede a profissão, lá isso é. Eu, que nem poeta sou – sou apenas uma transgressora da poesia –, sinto-me triplamente recompensada na minha inocente transgressão. Não sou poeta que se preze e estou respondendo que sou. E num campo onde teria de escrever “aposentada”. Fico realizada na minha infração do dia.

Caro ouvinte, fala sério. “Aposentada” é muito feio. “Poeta" é muito mais bonito. Verdade ou não é?

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